Por: Cinthia Fragoso
A literatura e a música foram artes que, desde os primórdios da humanidade caminharam juntas. Por questões sociais, territoriais e, principalmente, políticas, com o decorrer dos anos, a música deu lugar a espada, a união deu vazão a escravidão latente, e essa miscigenação dos povos, ao invés de contribuir, separou as culturas, as artes e, consequentemente, na forma com que, culturalmente, as pessoas têm acesso a elas.
Por razões de colonização, luta de classes, fatores políticos e de opressão de povos, os negros sempre tiveram os seus papéis diminuídos e excluídos pelas partes minoritárias, porém, com o maior poder, ou seja, os brancos. Por esta razão, mesmo ainda com tantos avanços tecnológicos alcançados até então, socialmente, a sensação que se tem é que se entra em uma zona de retrocessos em que a valorização à cultura negra continua escassa, a literatura negra continua pouco conhecida e pouco reconhecida como deveria e espaços educacionais estão, claramente, recheados de racismo, do início, ao fim, o que denota extrema deficiência.
Esses fatos são facilmente identificados e denunciados, atualmente, em programadas de incentivo a arte nacional, seja de literatura, de filme, de música, em diversas representações artísticas possíveis, bastando um olhar atento, porém, crítico e aberto a um mundo novo. Nos deteremos aqui, em uma dessas produções inovadoras, que é a obra “Olhos d’Agua” da notável escritora mineira que, claramente, utilizou do contexto desfavorável com o qual cresceu, em um cenário repleto de discriminações, e conseguiu transformar isso em adubo de representatividade para sua arte para as pessoas que as lessem. Hoje, é um destaque em literatura comparada em Minas.
Olhos d’Agua é uma obra que foi lançada pela primeira vez em 2014 e que comprova, dentre vários outros temas, sobre a violência urbana e a desigualdade social, pautada principalmente no que diz respeito às mulheres negras. Ao se abordar sobre o livro em questão, através de 15 contos Conceição Evaristo, por exemplo, põe em crítica também, o fato de muitas vezes o homem protagonizar a história de uma mulher, retratando a ótica para as mulheres, no lugar delas, como se elas mesmas apresentassem incapacidade, ou algo que poderia denotar uma fraqueza do personagem por parte do autor, etc. Essas hipóteses e essas inquietudes são algo que já haviam sido destacadas por Jaime Ginzburg em outra oportuna discussão.
Seríamos um país em que é necessário que, de tempos em tempos, morra uma mulher para que um homem conte sua história? O que significa, alegoricamente, essa imagem? A literatura brasileira seria ela mesma, espaço de realização de uma cena sacrificial de um ritual fúnebre. Os escritores, sem combinarem entre si, professam um compromisso comum, dar visibilidade a um movimento melancólico. (GINZBURG, 2013, p. 62).e
No conto Di Lixão, que é o décimo conto desse livro, o personagem principal que recebe esse mesmo nome, e que é muito bem descrito em terceira pessoa pelo narrador, tem uma vida completamente avessa do que se pode esperar de um protagonista de um conto.
Pela primeira vez, depois de tudo, se lembrou da mãe. Ainda bem que aquela puta tinha morrido! Ele sabia quem havia matado a mulher. Tinha visto tudo direitinho. Na polícia negou que estivesse por perto, que suspeitasse de alguém. Depois de três ou quatro idas à delegacia, os policiais acabaram por deixá-lo em paz. Ele sabia quem. Pouco importava. Que deixassem o homem solto. Não gostava mesmo da mãe. (EVARISTO, 2018, p. 84)
Di Lixão, tem um temperamento e uma vida completamente atribulada, saúde debilitada, morre no fim do conto (spoiler alert), mas a todo instante, o narrador faz inferências à figura da mãe, o que faz com que o leitor interprete que, os pensamentos do personagem, por mais que ele lute contra, pelas suas próprias características de idade, contexto, ao que está exposto, e o próprio assassinato da mãe, não tiraram o que ele tem de infantil.
Não aguentava a falação dela. Di, vai para a escola! Di, não fala com meus homens! Di, eu nasci aqui, você nasceu aqui, mas dá um jeito de mudar o seu caminho! Puta safada que vivia querendo ensinar a vida para ele. Depois, pouco adiantava. Zona por zona, ficava ali mesmo. Lá fora, o outro mundo também era uma zona. (EVARISTO, 2018, p. 84)
Essa violência e rebeldia, no fim, acaba acarretando na morte trágica que a autora descreve imageticamente como morreu em “posição de feto” (EVARISTO, 2018, p. 86). Do mesmo modo, a forma com que morreu e a maneira com que o narrador faz a passada das características dessa morte, faz com que o leitor pense que o personagem não tem importância social alguma e que foi só mais um que morreu. Uma notável diferença no âmbito do feminino, entre esse e outros contos do mesmo livro, por exemplo, se vê, em Ana Davenga (EVARISTO, 2018, p.21), por exemplo, a personagem vê toda uma vida passar em prol de um homem, ao contrário de Beijo na Face (EVARISTO, 2018, p. 55), em que se vê desvelar um relacionamento abusivo e todas as suas perseguições do início ao fim.
Como já foi dito anteriormente, música e literatura levantam, a priori, uma intencionalidade parecida de alcance. Encontramos em uma canção um grupo paulista de rap, fundado na década de 1988, dois tipos de discursos completamente diferentes, mas que, por outro lado, abrem espaço para serem interligado com a obra anterior em alguns aspectos e relances. Na obra do grupo Racionais Mc’s, uma composição feita por Mano Brown, a mulher também é reduzida a palavras como “puta” ou “vagabunda”, como na obra de Evaristo (2018), no entanto, acreditamos que isso seja uma eleição provocativa, já que, ao fim na canção os tipos de versos mudam e o assunto também muda. Observa-se o trecho a seguir,
(…)Vagabunda, queria atacar do malucão, usou meu nome/
O pipoca abraçou./
Foi na porta da minha casa lá botou pânico em todo mundo 3h da tarde/
E eu nem tava lá….vai vendo!/
– É mas aí, Brown, tem uns tipo de mulher truta que não dá nem pra comentar. (RACIONAIS, 2002)
Neste caso acima, a figura feminina precisa, ainda, ser subalterna a figura masculina, o que acentua o machismo presente, mas, principalmente, por outro lado, uma visão e uma denúncia particular de quem canta, o que é acentuado através dos xingamentos utilizados, algo que os aproxima da obra anteriormente analisada. Outro ponto de proximidade a se chamar a atenção, é que, nesse mesmo trecho, também se pode perceber o contexto de subalternidade e de violência em que os personagens vivem, logo no início da narrativa. Também, o homem narra no lugar da mulher os acontecimentos, assim como em Evaristo (2018). A narrativa dessa música, começa com uma tonalidade e termina com outra completamente oposta, já que é um Ode à esperança.
“(…)Fé em Deus que ele é justo!
Ei, irmão, nunca se esqueça
Na guarda, guerreiro, levanta a cabeça, truta
Onde estiver, seja lá como for
Tenha fé, porque até no lixão nasce flor
(RACIONAIS, 2002)
Nesse ínterim, pode-se afirmar que, mesmo ainda existindo tantos teóricos insistindo em dizer que música e literatura são objetos de estudo apáticos, distanciados e indissolúveis, perseveramos na afirmativa de que eles fazem parte do mesmo objetivo, já que são vozes fadadas a serem escutadas. As obras aqui trabalhadas, portanto, possibilitam a ruptura de paradigmas e comparações, que são na verdade, infindáveis. Ao menos, esse foi um recorte do que tentamos, de maneira prazerosa, realizar.
REFERÊNCIAS
GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas: Autores Associados, 2013, p. 35-73.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’agua. Rio de Janeiro: Pallas Mini, 2018, p.83-86.
RACIONAIS. Dia após o Outro dia. 2002. Composição: Mano Brown. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/racionais-mcs/64916/>. Acesso em: 31 de jan. de 2020.
2 respostas
A arte em sua mais importante função: é ao mesmo tempo voz, audição e denuncia… Uma oportunidade para esclarecer e denunciar fatos… Mostrar realidades camufladas pela sociedade. Parabéns pelo excelente texto.
Gratidão pelo seu comentário José!