A voz poética catingueira em “Estrela maga dos ciganos”

Fernando Portela[1]

Elomar Figueira Mello, compositor, escritor e cantor brasileiro, é um dos grandes nomes da cultura sertânica ou sertanês² (nomes que o cantor prefere) que alicerça um parâmetro uno para a produção musical brasileira. Nesse viés, a proposta deste texto é apresentar uma breve análise de uma de suas cantigas encontrada no disco “Na Quadrada das Águas Perdidas” (1979). Propor uma análise breve é, sobretudo, desafiador, haja vista a complexidade que cada produção musical possui no repertório elomariano. Diante de tamanha complexidade, o presente texto priorizará um elemento que forja o cenário de visualização do sertão elomariano, a voz do catingueiro.

A voz é uma construção textual de elaboração enunciativa que produz o efeito discursivo no interlocutor. Nesse lugar, Elomar, diante de acordes complexos, traz a voz daquele que está imerso em seu lugar de ambientação, descrevendo códigos a partir de termos característicos e de ações singulares. Assim, a canção “Estrela maga dos ciganos” propõe um olhar realístico no que tange os elementos de estabelecimento social sertânico, mas numa produção profundamente poética a partir de elementos metafóricos. O próprio título traz essa alusão, a qual aponta os ciganos (seres errantes que vivem na caatinga, provocando temores naquele lugar) em intrínseca união com a representação metafórica da “estrela maga”. “Maga” no sentido de mágica, encantamento; “estrela”, elemento metafórico que, neste texto, serve como mecanismo de apropriação provocativa de produções implícitas.

Na canção, a voz que canta é do próprio catingueiro que, a despeito do sentimento de desespero e angústia, pretende sair de sua querida terra “Eu vô dexá tôdéssas coisa aí dum lado/Já num tenho mais costado/Prús baque dêsse rojão/É tanta coisa pur dever tanto pagar/Sem receber tanto que dar/Chega! Já num guento mais não”. Notam-se duas questões importantes: a primeira, o compositor faz questão de usar termos características do dialeto catingueiro como elemento do forjar da autenticidade da voz que canta; o segundo, o tom de angústia, não se sabe o porquê, a priori, da partida dele (catingueiro) para outro lugar. Dessa maneira, é com a chegada dos ciganos “Só tô isperano é a promessa dos ciganos/Que na terra inda êsse ano/Vai divagarin posar” que a partida iminente do ser (catingueiro) se efetivará. É importante indicar como o autor possui todo o cuidado de usar termos catingueiros para evidenciar a produção poética/metafórica que promove o efeito de sentido no receptor, por exemplo, “Prús baque dêsse rojão” (a vida exaustiva). Na continuidade da cantiga, a voz diz: “U’a istrêla maga/N’ua aparição estranha/Da Serra da Carantonha/Inté o Geais eu vô prá lá”. Existe uma aplicação plenamente metafórica nesses versos. A serra da Carantonha, por exemplo, é o lugar mágico de produção das cantigas, que serve como cenário das muitas ações nas produções elomarianas. Ao trazer tal representação, o autor intenciona aprofundar o acontecimento esperado pelo catingueiro, isto é, uma aparição emblemática e, nos termos do personagem, “estranha”. É nesse momento que a voz poética aponta para os formadores dos códigos sertânicos “Se sussarana sêca rapina e ciganos/Num pará de fazê danos/E Zé do laço conseguí/Vô chiquerano os meus bodes pru Gerais”. A suçuarana (onça-parda típica da caatinga) que caminha nas noites de lua cheia e, geralmente, mata o sustento do catingueiro, os animais; os ciganos que passam levando tudo que os habitantes daquela região possuem (bens); e a figura do Zé do laço que reporta a ideia daquele que ajudará o catingueiro a conduzir (chiquerano) seus “bodes” (animais) para “as bandas” das Minas Gerais.

E jura que nunca mais
Eu boto meus pé aqui
E inquanto na face da terra havê tiranos
Vassalos e susseranos
Sinhorio e servidão
Fico lá incima hospedado com os Reis Mago
Nos camim de São Tiago
Num boto os pé nesse chão

Na estrofe acima, o catingueiro, decidido a sair, afirma os pontos de sua retirada (tiranos), pois há uma relação de “vassalagem” existente entre os seres daquele lugar, isto é, de dominação, de imposição, preferindo os caminhos (camim) de São Tiago. 

Tá um tempão de Deus sem tê pr’onde se saí
Será o tempo do quetaí
Que já chegô no meu sertão

O catingueiro, então, reforça duas ideias: “um tempão de Deus” que cria a produção imagética de luta, dor, tempo ruim e o anunciar da confiança daquele que tudo é para ele, o próprio Deus. Nesse instante, há a esperança de chegada nesse sertão. Do retirar-se para o encontrar-se; da fuga ao achado. Por fim, Elomar repete o refrão (chegada dos ciganos) como elemento de retirada da voz que sabe que precisa partir.

Embora a brevidade do texto não abarca todo esmiuçar da canção, pois a mesma exige um esforço de análise detalhístico, os elementos aqui empregados vislumbram os códigos de vivência sertânica, a angústia do ser que habita naquele local, o emprego do dialeto catingueiro, a complexidade elaborativa musical, tudo isso a partir de uma produção poética que alicerça o efeito de produção sensível.

Referências

MELLO, Elomar Figueira. Na Quadrada das Águas Perdidas. Rio de Janeiro: Kuarup Discos, 1979.

ROSSONI, Igor. Cenas brasileiras: ensaios sobre literatura. Salvador: Vento Leste, 2012.

______. Tessituras transfiguradas:o espaço do não-lugar em Elomar Figueira Mello e Manoel de Barros. In: Anais do XI Congresso Internacional da Abralic: tessituras, interações, convergências. São Paulo: USP, 2008.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Amálio Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.


[1] Mestre em Letras: Cultura, Educação e Linguagens pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

2 Elomar evita o uso do adjetivo “sertanejo”, por considerá-lo associado a uma visão construída pela cidade em referência ao sertão. Para o compositor, o que a mídia denomina “sertanejo”, no sentido de “originário do sertão”, nada mais é do que um “habitante urbano de estilo cowboy com indumentária texana” e assim chamada. “música sertaneja” seria apenas um produto “difundido pela indústria cultural” alicerçada numa visão estereotipada do sertão (RIBEIRO, 2014, p. 194). Elomar prefere os termos “sertanez” ou “sertanês” (presente, por exemplo, no título de seu disco de 1988, gravado com Turíbio Santos, Xangai e Elomar: Concerto Sertanez) ou, então, “sertânico” (conforme o disco Árias Sertânicas, de 1992).

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