“Torne 1984 ficção novamente”

Por Evelyn Ruani

Essa frase-título dá início ao texto complementar “Não Deixe Acontecer” do jornalista Romeu Martins na edição do aclamado 1984 de George Orwell recém-publicada pela DarkSideBooks em comemoração aos 10 anos da Editora. O texto, extremamente bem escrito, traz análises extremamente interessantes sobre Orwell, sua tão famosa obra e o cenário político mundial em especial dos EUA e Inglaterra. 

Relendo os trechos que marquei desse texto, me deparo com uma frase de Orwell em um ensaio de 1941 que dizia “enquanto escrevo, seres humanos altamente civilizados estão voando sobre minha cabeça, tentando me matar”. Impossível não fazer um paralelo com nosso cenário político atual. Independente de qual lado da história você tenha ou esteja escolhendo ficar, ou até mesmo se apenas escolheu se isentar, os acontecimentos recentes são tristes e carregados de medo. 

Como bibliotecária e amante das palavras, só me resta apelar a mais básica necessidade e única salvação viável: ler, estudar, relembrar, refletir e não deixar acontecer de novo. “Torne 1984 ficção novamente”. Romeu Martins foi muito feliz em pontuar em seu texto que um clássico é um livro que nunca esgota tudo que tem a dizer, trazendo a definição do escritor italiano Ítalo Calvino. Por isso, eu te convido a ler 1984, caso ainda não o tenha feito, e caso já, releia-o o quanto antes. 

Eu li 1984 há uns 10 anos e fiz a releitura nessa edição lindíssima publicada pela DarkSide Books. Em ambas as leituras, os sentimentos foram os mesmos: medo, pavor, angústia, opressão e desesperança. Embora esteja classificado (e como um dos maiores e mais famosos) no gênero distopia, para mim é um exemplar do pior terror que pode existir: o humano.

Narrado em terceira pessoa, 1984 nos apresenta a vida de Winston no ano em que dá nome à obra numa Londres que agora pertence à Oceânia, uma superpotência controlada por um governo totalitário, o Partido, e comandada por um líder conhecido como o Grande Irmão. Há outras duas superpotências: a Eurásia e a Lestásia que vivem em constante guerra entre si.

O protagonista pertence a uma classe social intermediária e trabalha no Ministério da Verdade, lá sua função é editar reportagens de jornais antigos alterando os fatos para que o passado esteja de acordo com as diretrizes do governo atual. Assustador, não? E isso é apenas o começo. Outras características terríveis dessa sociedade nos são apresentadas ao longo da leitura e vamos ficando cada vez mais incomodados.

O governo não busca somente poder político e a centralização num único líder absoluto, mas o controle total da sociedade através da dominação de todas as instâncias da vida. Tudo é controlado pelo governo, inclusive o pensamento, a forma de se expressar, a linguagem, a alimentação, a literatura, enfim… Tudo! Os livros, inclusive, assim como as notícias, estão sendo todos traduzidos para a nova linguagem imposta pelo Partido e todas as casas possuem teletelas que servem como televisores e câmeras pelas quais todos são observados.

Winston vive numa dualidade de sentimentos, pressionado a aceitar o sistema vigente, mas sentindo uma necessidade de se rebelar contra ele, quando começa a ter mais contato com sua colega de trabalho, Júlia, uma jovem rebelde que odeia o Partido. Winston acaba se apaixonando por ela e ambos decidem partir em uma revolta secreta contra o governo, unidos pelo amor e pelo desejo de liberdade.

Não me sinto de forma alguma capaz de colocar em palavras a grandiosidade dessa obra e todas as importantes nuances de sua abrangência política, social e cultural, mas me atrevo a trazer minha humilde opinião em relação ao ponto alto dela para mim, que é sua vertente psicológica. A forma como o governo consegue influenciar a mente das pessoas e o nível aterrador e cruel a que chegam em suas ações (sala 101, nunca me esquecerei) demonstram que a crítica de Orwell não era somente a um governo totalitário, mas à corrupção e desintegração humana. Como afirmaria o autor em seu ensaio “Por que Escrevo” de 1946: 

“O meu ponto de partida é sempre um sentimento de partilha, uma noção de injustiça. Quando me sento para escrever um livro, não digo para mim ‘vou produzir uma obra de arte’. Escrevo porque existe alguma mentira para ser denunciada, algum fato para o qual quero chamar atenção, e acredito sempre que vou encontrar quem me ouça”.

Para complementar essa leitura essencial, indico a Graphic Novel 1903: Orwell lançada também pela editora DarkSide Books, sobre a vida e obra do autor de 1984. Essa biografia lindíssima que tem por roteirista Pierre Christin e o artista visual Sébastien Verdier,  é recheada por citações do próprio Orwell, incluídos em forma de texto datilografado, que não só reconstituem os fatos mais conhecidos da época em que viveu, mas também detalhes bastante íntimos da vida do autor.

De policial a mendigo, trabalhou em minas de carvão, foi cozinheiro e entrou em campo de batalha contra os fascistas durante a Guerra Civil Espanhola, onde levou um tiro na garganta que quase o matou. Foi aluno de Aldous Huxley, um dos meus autores favoritos, casou-se, adotou um filho, teve uma época tranquila num sítio, criando galinhas e cultivando plantas. Enquanto tudo isso acontecia, nunca parou de escrever. De cartas a obras ficcionais intensas, todos os seus escritos carregavam uma visão política e crítica feroz à sociedade da época. Uma vida memorável muito bem retratada nessa HQ que é uma obra prima. 

Que essas duas leituras possam trazer reflexões importantes e que, principalmente, possamos tornar 1984 ficção novamente!

Uma resposta

  1. Parabéns pelo excelente artigo. Um maravilhoso relato de 1984, um clássico, a instigar-nos a leitura e traçarmos um paralelo com nossa realidade atual. Uma visão esclarecedora.

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