ENTRE O MITO E RELIGIOSIDADE: O PODER DA LITERATURA NA CONSERVAÇÃO HISTÓRICA DE UM POVO

Por Alex Brito

No início das comunidades, o mito tinha a função de explicar aquilo que até então estava longe da compreensão dos povos antigos. Em sua maioria, servia para trazer uma compreensão de como todas as coisas se formaram ou nasceram, quase sempre eram atribuídas a forças sobrenaturais aquilo que não se encontrava uma explicação de fácil assimilação. Os mitos formavam estruturas importantes para a sustentação moral, social e até mesmo religiosa dos povos tribais.

Podemos ver essas relações em todos os povos antigos espalhados pelo globo, cada um deles com suas formas distintas de se relacionarem com as forças da natureza. Tais forças eram o sol e sua forma de iluminar tudo aquilo que os olhos poderiam enxergar, a lua e sua força de movimentar as marés e de fazer o astro rei se esconder, os raios e suas fúrias contra as matas. Todas essas manifestações eram atribuídas a seres míticos e deuses. Que forma mais fácil teria para explicar tais fenômenos? O mito é uma das primeiras formas de ciência e de filosofia já que se buscava uma forma de verdade sobre fenômenos ainda inexplicáveis (Bierlein, 2003).  “O mito é a primeira tentativa tateante de explicar como as coisas acontecem, o ancestral da ciência. Também é a tentativa de explicar por que as coisas acontecem, a esfera da religião e da filosofia” (BIERLEIN, 2003, p. 19).

Depois dessa contextualização mínima sobre a importância dos mitos no conceito geral, vamos entrar na nossa “Delorian” e voltar ao passado do continente africano para tentarmos entender o que os mitos, chamados em iorubá de “itãs”, trouxeram de sabedoria e de entendimento da relação entre seus povos, suas crenças e o mundo à sua volta. Os itãs são um conjunto de mitos e lendas dos povos tribais africanos que trazem a sabedoria ancestral daqueles povos e que vemos até os dias de hoje nas celebrações e na religiosidade de matriz africana aqui no Brasil.

Para compreendermos mais sobre esses mitos, suas linguagens e literatura, bem como suas influências em como hoje, em pleno século 21, enxergamos o mundo a nossa volta e de como eles influenciam uma das maiores culturas de resistência negra fora do continente africano, vamos conversar com a Ialorixá Thais de Alencar do Terreiro de Umbanda Cruzada “Abassá de Odé Luz de Gaya”.

Revista – Em primeiro lugar, sua benção Mãe Thai, como carinhosamente é chamada por seus filhos e amigos, e gratidão por aceitar conversar conosco sobre a literatura de Itans… já aproveito para emendar a primeira pergunta: o que vem a ser a literatura de Itã?

Que meu Pai te abençoe, meu filho. A literatura de Itans, no meu ver, foi uma forma que os pesquisadores acharam para compilar as estórias do povo africano, afinal, as lendas eram passadas de forma oral. A sistematização escrita, começa com os colonizadores, e muito dos “mistérios”, das vivências você não irá achar escrita.

E os Itans além de auxiliarem a manter a cultura viva entre as gerações, trazem referências e reflexões sobre o início do mundo, sobre a imagem arquetípica de cada Vodun e Orixá, explica com olhar simples as questões sobre a vida!

Revista – Qual a relação desta literatura com a forma em que vemos hoje a cultura afrocentrada?

Como falei anteriormente, a literatura hoje nos ajuda a ter uma ideia remontada dos cultos aos Orixás, mas é preciso lembrar que o candomblé é uma religião 100% brasileira, e que na África o culto é de nação! Como a escrita foi feita baseada no que era contado é preciso lembrar que nem tudo que está escrito pode ser a verdade! Pois, muitas pessoas chegam na internet atualmente, e não buscam fazer pesquisas de referências confiáveis de antropólogos, pesquisadores e afins.

Devido a esse processo de colonização, muita coisa foi alterada, então nem tudo o que se lê é verdade, e a depender do que esteja escrito, isso pode gerar um olhar crítico e julgador!

No meu ponto de vista, da mesma forma que é positiva essa catalogação de conhecimento, pode ser nociva se não for bem referenciada.

Revista – Sabemos que os mitos têm um papel social e moral nas culturas dos povos tribais e antigos. Mas é muito perceptível que os itans tenham ainda hoje uma forte relação com a resistência da cultura africana. Como a senhora enxerga esse fato?

Sem história perdemos a cultura! Perdemos a identidade! É extremamente essencial manter viva a memória dos nossos antepassados. Afinal, somos miscigenados… e se hoje estamos aqui, foi porque nossos antepassados nos permitiram.

Enquanto mantivermos as contações de histórias, o ensinamento continuado, garantiremos que a cultura dos nossos mais velhos não morra.

Revista – Dentro da esfera religiosa de matriz africana, existem os preceitos. Como se dá a relação desses Itans no dia a dia do terreiro?

Muito dos preceitos são explicados através dos itans, os fundamentos, as oferendas, a forma de se portar, o que o Vodun vem para nos ensinar. Então tem total relação com o nosso dia a dia.

Revista – A senhora é conhecida como uma das Ialorixás que mais pesquisam os Itans na região metropolitana de Salvador. Como manter essa ancestralidade viva e como fazer com que essa literatura seja reconhecida e aceita pela população geral, como forma de sabedoria e conhecimento?

(Risos) Não sei se sou tão conhecida assim, mas que adoro pesquisar as histórias e passar para os meus filhos de santo com a maior fidedignidade, isso sim é verdade.

Gostaria de poder ter mais tempo para veicular mais os estudos e a importância disso na vida do ser humano! Mas são tantas atividades que me falta tempo!

Acredito que falta às pessoas reconhecerem suas identidades originárias, aceitarem que somos mestiços, que a história dessas cidades e desse país é uma grande miscelânea. Afinal, a escravidão faz parte da história do país.

Precisamos reconhecer que nossos antepassados são negros e índios que foram escravizados. Enquanto negligenciarmos essa influência na nossa história, não conseguiremos nos reconhecer na nossa identidade!

Revista – A Aorta tem um enorme prazer em conversar com a senhora e de trazer um pouco dessa literatura fantástica para nossos leitores. Queremos agradecer por nos ter permitido adentrar essa senda e vislumbrarmos um pouco dessa fascinante história da linguagem africana/brasileira. Gratidão!

Eu que agradeço imensamente pelo convite! E desejo vida longa a esse projeto maravilhoso que é o resgate da literatura e do acesso à cultura.

Alex Brito é poeta, escritor, designer e editor da revista Aorta. Entrevistou Thais de Alencar na oitava edição.

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