A FESTA DE RIDLEY é uma adaptação de “Mercury Fur”, obra do britânico Philip Ridley, aqui com tradução e direção de Mateus Bruza. Pela coragem de estrear um texto de ficção científica, de forma independente, esta montagem da Última Cia já merece nossa atenção. Este gênero parece ter sido esquecido entre a austeridade acadêmica e a descapitalização criativa em nosso teatro. Eis que vem esse sopro de ousadia. Melhor dizendo, revoada! Revoada de borboletas alucinógenas que enchem nossas vidas de uma poeira cintilante. Elas tomam conta de nossos cérebros e de toda São Paulo!!! Mas não é Londres?! Não, é aqui mesmo. O tema é confortavelmente universal e assustadoramente atual. A Praça Roosevelt e arredores acomodam essa distopia sem esforço. Juntando isso à estética cinematográfica proposta por esta encenação, os cem minutos de peça correm como um filme de streaming! Ainda deixa aquela vontade de assistir mais. Uma sequência, um prequel ou até uma série!
Continuando esse paralelo com o audiovisual, é bom enfatizar que os efeitos práticos, maquiagem e demais ferramentas ficam mesmo no âmbito estético. A linguagem continua sendo teatral, gênero dramatúrgico. Sem projeções, microfone aberto ou quebra da quarta parede. E assim, com todas as paredes “intactas”, a sensação de pertencimento àquela narrativa se faz ininterruptamente robusta. O figurino e a cenografia nos lembram Trainspotting, Eu Christiane F, Diário de um Adolescente, filmes sobre o uso de entorpecentes que marcaram os anos 90 com apelo visual grunge, trance e psicodelia. Talvez até foram referências, mas sem engessar a criatividade técnica da Companhia. Os trajes, por exemplo, refletem tempos de escassez. São peças achadas nas ruas, provavelmente disputadas ou relíquias guardadas dos bons tempos. Olhe mais atentamente e perceba joelheiras, máscaras, acessórios funcionais que revelam uma pesquisa sobre EPI e sobrevivência. A luz é precisa. Tão precisa a ponto de não ser percebida por um tempo. Então nos momentos em que ela protagoniza a cena, contando o enredo, mostra como foi imprescindível o tempo todo para criar a tensão. Junto com o desenho sonoro e seus efeitos sobriamente pontuais, montam esse mundo distópico em nossas mentes sem que o texto precise de longas explicações.
O elenco é tão grandioso na diversidade quanto na sintonia. Vou destacar a atuação de Dani Rechtman para exemplificar tamanha entrega, mas já parabenizando todes. Sua personagem é quem mais está em cena. Porém, Ridley não deu ao jovem adicto uma jornada de herói ou um arco dramático muito complexo. Se não fossem as nuances trabalhadas por Bruza e Rechtman, ele poderia resultar num clown Augusto sempre submisso ao irmão dominador. Mas aqui, através dos gestos, olhares e intenções na fala, ganha-se camadas de trauma, nóia, libido e até de um ingênuo anti-heroísmo que nos lembra Pixote (Babenco) ou Capitães da Areia (Jorge Amado). Dito isto, se até aqui vocês seguiram o aviso de não comer as borboletas, pode ser que ainda estejam lúcidos o suficiente para sobreviver a esta festa distópica que, sem dúvidas, é um dos eventos mais empolgantes do ano. Vá ao teatro.
Fotos de: Marcos Bruno
Por Lou da Silva
Dramaturgo/gista
Uma resposta
Nossa!!! Estou super curioso para assistir. Todos comentários que pude ver e ouvir , foram sensacionais.