“Ela me mantinha cativo, porque tinha prazer em minha devoção.
Um sacrifício vivo a um deus vaidoso”
Papeis rasgados espalhados, ajuntados e jogados fora. Dentro de mim uma voz diz: “deveria queimá-los, as- sim é que se quebra maldições”. Ela foi mesmo uma maldição em minha vida.
Seu ar intelectual, de quem sabe o que diz e de quem não duvida do poder que a beleza tem, me seduziu de cara. Não precisei trocar muitas palavras, perguntar seu cantor preferido ou qual a comida predileta, nem sobre seu signo ou gênero literário favorito para ter a certeza de que aquela mulher seria meu fim ou meu recomeço. Iria do céu ao inferno em sua boca, em seu corpo sem roupa, no seu tom mais rosê. Eu sabia disso e torci para que o lado do inferno fosse apenas minha cabeça trágica, exagerando no drama pela terceira vez só naquele mês.
Melissa tinha a voz mais grave que uma mulher poderia ter. Era agradável ao pé do ouvido ou quando discursava em algum sarau literário. Fosse à capela ou microfonal, a música que saía da sua garganta longa era sempre digna de se parar para ouvir. Um delírio para todo interlocutor, uma sonata composta pelas cordas vocais da escritora mais sensual que já houve. Sua facilidade para falar sobre qualquer coisa com qualquer um me assombrava e isso só enquanto eu a observava.
Foi em um desses eventos que a conheci e ela a mim. Confesso não ser um leitor tão assíduo, mas o lançamento de um novo livro de suspense de um aclamado autor, era evento raro ao qual não costumava faltar. Eu, um mero admirador de histórias de terror, ela, o centro de todas as leituras de olhos de homens e mulheres daquele universo.
Naquela mesma noite, por algum milagre, Melissa me deu tudo que tinha em seu corpo, em seu ser. Eu jurei amor eterno a uma deusa encarnada, que em carne viva me decifrou e saciou todos os desejos mais indiscretos. Depois, um relacionamento à distância.
“Falávamos” à escrita no celular, pois ela achava mais romântico do que ligar. Tudo o que eu tinha eram os dígitos que imprimia para poder sentir, em meus dedos, seus dedos ao digitar. Copiava, colava e imprimia me perguntando quando ela voltaria, quando a beijaria e, mais uma vez, seria preenchido por aquele perfume, aquele gosto que me persegue ainda agora e sua voz sussurraria ao meu ouvido todos aqueles encantamentos.
Melissa era livre e sabia que eu a queria só para mim, em minha gaiola dourada, inteiramente adornada para esse pássaro rouco cantar e somente eu escutar. Ela jurou que um dia amaria somente a mim, que todos os seus versos seriam meus e em todos os seus sonhos eu estaria. Jurou que nossos projetos seriam um só, como quando nossos corpos se uniam no máximo frenesi. Ela me jurou, mas era péssima em cumprir promessas.
Um mês depois do nosso último e terceiro encontro ela me ligou. Ligação e não mensagem?!
Pensei já exaltado por imaginar o mais fatídico:
– Alô…Oi, meu bem… Eu preciso dizer que não vou mais te escrever…
Melissa era livre e sempre seria. Talvez minha insistência em pedir fotos todos os dias, e colá-las na parede do meu quarto as que me enviava a assustou quando a surpreendi em um dos nossos esporádicos encontros por causa da sua “agenda”. Ou, então, mostrar-lhe o livreto que confeccionei com nossas conversas de três meses não soou romântico para aquela que fundou o romantismo no meu coração sempre, sempre tão partido.
Ela me mantinha cativo, porque tinha prazer em minha devoção. Um sacrifício vivo a um deus vaidoso. Mas eu não, dessa vez não…
Soube que ela viria à cidade para mais um sarau. Eu iria vê-la comentar sobre um livro de um certo novo autor e garantiria que seria a última vez que alguém se iludiria pelas vãs promessas desses escritores degenerados! Apaixonados por todos e nenhum, encontrando musas nos alguéns, os fazendo sentir únicos mesmo nunca sendo as- sim!
Melissa, doce Melissa da voz grave, das palavras profundas e mentirosas. Uma peste perniciosa, tal qual ser- pente enroscada em meu coração. Melissa, doce Melissa… Eu a amei até o momento em que minha faca encontrou o seu peito.
Last modified: 24/07/2024