Written by 12:40 CRÔNICA

A roda da vida

"É uma distopia: em vez de imaginar mundos, a gente os consome. 
Depois que comermos a Terra, vamos comer a Lua, Marte e os outros planetas" - Ailton Krenak

por Tiago D. Oliveira

Lembro que minha avó tinha os pés descalços na terra enquanto jogava milho para as galinhas. Depois dizia algumas palavras, segurando um galho seco voltado para o descampado; abria os braços e parecia que as plantas, os animais, o sol — tudo a partir dali — começavam o seu dia. E suas palavras até hoje me marcam cedo, quando abro os olhos de manhãzinha. Repito-as como uma oração e vou: “que a roda da vida é receber, cuidar e deixar para quem vem em seguida”.

Acordo e sigo com as pontas dos dedos na xícara de café alguns versos de Adélia Prado. O início da manhã precisa ser de conexões. Mas nas notificações do celular há notícias mais frescas do que o pão na mesa da sala. Leio o Ailton Krenak criticando as grandes potências na COP 30 e afirmando que, para se combater a crise climática, o mundo precisa repensar a noção de progresso.

Versio, vertere: uma baleia jubarte foi encontrada no meio da floresta amazônica, na Ilha de Marajó, no Pará, levantando o mistério sobre alguma explicação possível. Tubarões foram achados vivendo dentro de um vulcão ativo nas ilhas Salomão, no Oceano Pacífico, em águas tóxicas, quentes, ácidas e cheias de gases. Baleias-corcundas foram observadas criando anéis circulares perfeitos na presença de seres humanos. Eram 40 anéis de bolhas diferentes dos que elas costumam fazer quando vão caçar, o que sugere que podem estar tentando se comunicar com a humanidade. E ainda não nos perguntamos: o que anda mesmo acontecendo?

Há uma frase de Guimarães Rosa, em “Grande sertão: Veredas”, que diz assim: “Eu não sentia nada. Só uma transformação pesável. Muita coisa importante falta nome”. Penso nessa falta de nome, em seu perigo, por ser de natureza ambígua. Ela guarda um ar atraente e a sondagem do rasteiro e do desconhecido. Mas as coisas sem nome costumam, cedo ou tarde, ganhar ao menos um apelido. Há tantos nomes para as nossas faltas e para o que estamos nos tornando, que essa prática já não é um dia de domingo. É só olhar para as nossas próprias reações diárias, em comparação ao que já fomos um dia. E andamos nos acostumando. Essa “transformação pesável” de que fala Guimarães é o que, mesmo antes de se anunciar, já se remedia. Será que desse modo dá para notar o seu perigo?

A televisão está no último volume: são notícias medidas pelo nível de estranhamento que nos assalta livremente, sem que a gente perceba o quanto de uberização há

nisso. Tudo fornece narrativas destinadas ao ponto certo que pode vibrar ou viralizar mais facilmente. E quase ninguém grita ou enlouquece a partir disso. A impressão que fica pode ser resumida na frase de um dos ditos populares mais conhecidos: “eu quero é que o mar pegue fogo para eu comer peixe frito”.

Alguém fala na fila da padaria sobre pessoas com superpoderes reais que a ciência não consegue explicar: um homem que podia regular a temperatura do corpo, suportando um frio extremo sem problema algum; outro que consegue correr por dias sem parar e sem ficar cansado. Eles são um casal; ambos possuem um brilho animado no olhar quando olham para os lados durante a conversa. Citam um senhor que atrai objetos metálicos com a pele e outro que não é afetado por choques elétricos de alta voltagem. A cada investida acentua-se uma pequena disputa que invade o silêncio de cada ouvinte. E eu me pergunto o que seria mesmo um real superpoder?

Lembro de Stan Lee, em um dos quadrinhos do célebre Homem-Aranha, no qual escreve: “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”,e me pergunto sobre o alcance de uma força que se centra na incompletude de fazer pequenas troças com as pontas dos dedos no próprio umbigo. É angustiante. O filósofo Søren Kierkegaard descreve a angústia como uma vivência que demonstra a liberdade e o dever do indivíduo diante das escolhas da vida. É a partir delas que crescemos.

Volto a Krenak, porque o livro que tenho nas mãos, enquanto a fila não anda, é Ideias para adiar o fim do mundo. Estou no final e percebo um pouco mais sobre o conjunto de saberes que ali se encadeiam. Ao lembrar que tudo é natureza, o líder indígena nos convida para a reintegração: afirma que precisamos perceber que o cosmos, a floresta e a cidade são expressões de um mesmo organismo.

Eu sempre volto. Talvez o maior superpoder que exista hoje seja o de perceber que na vida não se pode fugir dos caminhos, da roda. Ela gira com a lentidão ancestral do que não precisa de explicação. Volto para a minha avó e seus braços abertos no descampado, inventando o dia como quem assegura um mundo possível. Pois me cabe repetir seu gesto enquanto passo seu recado.

Tiago D. Oliveira (Salvador, BA, 1984) é poeta, escritor, professor e pesquisador, com formação em Letras pela UFBA e UNL (Portugal). Foi finalista do Prêmio Oceanos 2020 com o livro As solas dos pés de meu avô (2020), publicado no Brasil e em Portugal. Vencedor do Selo João Ubaldo Ribeiro 2020 com a obra Soprando o vento (2020). Lançou recentemente Caramelo quer ver o mar, 7Letras, (2024). Seu trabalho foca na relação entre memória, ancestralidade, o cotidiano e a paisagem baiana.

Não perca nossas novidades!

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

Visited 8 times, 1 visit(s) today

Last modified: 17/11/2025

Close

Olá Aortano👋,
que bom te ver por aqui.

Inscreva-se e receba em primeira mão a nossa newsletters.

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.