por Isabel Milhanas Machado

— Já chegámos, moça.
A viagem de quatro horas que ligava o aeroporto a Poços de Caldas tinha terminado. Não se lembrava exatamente em que parte do caminho cedeu ao sono. Lembrava-se de sair da agitação da cidade, de uma bomba de gasolina com néon vermelho, das casas cinzentas com pouca luz no interior. Chegara, finalmente.
Procurou a rua da Capela de Santo António, onde se localizava o pequeno quarto alugado a uma família do Rio de Janeiro que possuía em Poços de Caldas um apartamento para as férias de verão. A rua era bonita, lembrava Lisboa. Teria alguma vez o seu avô visitado aquela capela? Estava frio. Retirou a chave do cofre localizado na caixa de correio do 1º andar do 143 e entrou na casa. Foi recebida por um pequeno bilhete na mesa da cozinha: “Seja bem-vinda, Joana!”, num papel arrancado de um caderno de argolas a5. O silêncio da casa e da rua paralisaram-na. Adormeceu no quarto, sem trocar de roupa.
A meio da noite, despertou. A cama era confortável, algo a que já não estava habituada. Bebeu um copo de leite de um pacote que a família amavelmente lhe deixou e sentou-se na pequena varanda da sala. Amanhecia. Desfez a mala, tomou um duche e saiu de casa, já a rua mexia. Nessa tarde, teria uma entrevista de emprego numa cadeia de supermercados. Pretendia ainda comprar uma roupa adequada à ocasião.
— Porquê Poços? – perguntou a responsável de entregas ao domicílio.
— Quis sair de Portugal. O meu avô era de cá, lembro-me de ver fotografias do meu avô no Bondinho, que eu achava ser no Rio de Janeiro, depois percebi que era aqui.
— Que maravilha. Ainda tem relação com ele?
— Infelizmente já morreu. Mas tive uns avós maravilhosos.
Era mentira. Joana não sabia porque mentia sempre que falava dos avós. Não tinham sido maravilhosos e as fotografias no Bondinho foram na verdade recortes que Joana encontrara em casa dos pais antes do acidente. Nunca havia comunicado com ele enquanto neta, apenas através de umas parcas cartas com selo azul destinadas ao seu pai. Dias depois, conseguiu o emprego num dos armazéns da cadeia, situado numa das avenidas mais movimentadas. A cidade era calorenta. Apesar do tempo macio de abril, as chuvas brincavam ao longo do dia com os vários passeantes que enchiam as ruas. Muitas vezes, cheirava a enxofre; e Joana lembrava-se daquela frase antiga: “são os mortos”. Ali, sentada num banco de ferro em frente ao antigo cassino, sentia-se velha,
cansada, uma menina presa num corpo de mulher. “Conseguiste o trabalho, fica feliz”, remoía ela entre dentes. Esfregava recorrentemente os olhos secos, que se humedeciam com o que ouvia logo ali ao lado: a menina de treze anos que, apaixonada, relatava às amigas uma conversa com o enamorado; a senhora baixinha de vestido rosa que segurava o seu cão no colo com medo talvez, que lho tirassem, ou que o mesmo se soltasse e fugisse, rumo a uma vida incerta fora das saias da sua dona. Como seria libertar-se dessa trela, pensava Joana, que destino teria aquele cãozinho cuja brisa da tarde lhe fechava os olhos de cansaço? E que destino teria a sua dona, possivelmente viúva, sem filhos, cuja mão esquerda acariciava – quase mecanicamente – o dorso do animal? Joana tinha frio, afundada perante aquele cenário quase pitoresco, ambientada pelo som contínuo da fonte que, de vez em quando, salpicava nos seus cabelos uma água adocicada.
Enquanto enchia sacos com produtos do supermercado a serem entregues na Rua Barros Cobra, Cláudia, uma mulher bonita, com cerca de cinquenta anos, e que via em Joana uma tristeza difícil de deslindar, perguntou:
— Você é casada?
A colega portuguesa desviou o olhar, sorriu, e girou a cabeça em forma de um não. Sentiu os ombros pesarem, não por tristeza, mas a imagem de André sentado na plateia do tribunal atormentava-a. Agora que pensava nisso, apeteceu-lhe escrever uma carta. Tinha a sensação de que Claúdia continuara a intercetar assuntos, mas, nesta altura, o pensamento de Joana recaía sobre aquela tarde, dez anos antes.
***
Era um latido que ficava cada vez mais agudo e mais próximo à medida que Joana avançava. Ela já tinha passado a fábrica do lado esquerdo e encontrava-se numa zona de plantações, com placas pregadas em arames farpados que diziam “propriedade privada”; não se via vivalma nos campos, apenas um Fiat Punto branco a ultrapassou. Os latidos continuavam, com mais frequência e Joana finalmente viu. Um homem com calças de ganga e blusão cinzento de cabedal pontapeava um cão de porte médio castanho na beira da estrada. O cão tinha a trela enrolada no pescoço e o homem, com a corda apertada, imobilizando o animal, fincava as botas no seu dorso. Em cada pontapé, o animal gania e contorcia-se de dores. Joana, em pânico, buzinou e gritou para fora do carro. O homem olhou para a Kangoo amarela e protestou, louco de cólera. Joana não desistiu de gritar, tentando perceber em que estado estava o animal. Nisto, o homem atirou a corda para o chão e foi ao encontro da carrinha, colocando-se em frente desta e atirando-lhe uma quantidade de nomes. Joana viu o animal levantar-se com dificuldade, defendendo o dorso. O animal mexia-se lentamente, havia sangue no chão, e parte da barriga estava ligeiramente deformada. O homem continuava a bradar aos céus e pontapeou a carrinha. Joana olhou para o homem, que estava mesmo à sua frente, e pregou a fundo no acelerador, na sua direção.
***
O turno terminou pelas oito horas da noite. Joana e Claúdia saíram para uma cerveja onde Luciano, filho de Claúdia, tocava todas as quartas-feiras. Ao chegar, Joana surpreendeu-se com a quantidade de pessoas que, num dia de semana, se reuniam para celebrar São Benedito. Apesar de leve, a cerveja começou a tomar conta do pensamento das recéns colegas que, aos poucos, se tornavam amigas. Pela primeira vez em muito tempo, Joana não sentiu medo de rir, de olhos postos no corpo jovem de Luciano que sacudia o tamborim e a puxava para dançar com mãos grandes e esguias. De uma das danças nasceu o convite para um café.
Encontraram-se dias depois no Café do Colono: o chão em mosaico hidráulico lembrou-lhe a sua casa no Cartaxo. A voz grave de Luciano, entre mesas vazias, sobressaiu: em cima da mesa, descansava um livro de cuja capa apenas reconhecia a palavra “Olga”. Nunca aquele nome lhe parecera tão bonito. A corrente de ar que se fazia sentir era suficiente para balançar os caracóis do jovem, equipado com a roupa branca necessária para o exercício das suas funções como massagista naquelas termas.
— São águas milagrosas, acredite – irrompeu Luciano, detetando o olhar fascinado de Joana sobre a fonte que repetia um som ensurdecedor – já experimentou?
— Ainda não.
— Minha mãe me disse que seus avós viviam aqui, é isso?
— O meu avô paterno, mais especificamente. Lembro-me de recebermos postais do Bondinho. – Joana não estava interessada em alimentar a assunto e alterou o rumo da conversa – Olga Savary…
— Você conhece?
— Não muito. Li alguns poemas dela, soltos.
— Pode levar, se quiser – entregando-lhe o livro com capa amarelada que continha a poesia completa da autora brasileira. Joana estendeu o braço, num sorriso, e pensou que há muito tempo que ninguém lhe emprestava um livro. Agradeceu, tentando esconder os olhos húmidos, e atacou:
— Leva-me a conhecer a cidade.
Na semana seguinte, Joana e Luciano subiram até ao alto da montanha. Do lado de lá, uma rampa fazia as delícias de dezenas de pessoas que saltavam de parapente.
Faziam fila, e Joana, apesar de se afastar de qualquer possível tentação de saltar, invejava por outro lado quem, tão diferente dela, experimentavam a corrida.
— Vou te apresentar uma pessoa. – disse Luciano, ao avistar uma mulher ao fundo do observatório recentemente construído.
A mulher, com cerca de sessenta anos, vestia uma saia comprida azul, um top amarelo, o cabelo escuro preso com um cordão de ráfia que, reparava Joana, parecia carregar penas de pavão.
— Joana? – agitava Luciano com carinho, no ombro da mulher portuguesa. – Kren está perguntando seu nome.
— Desculpe, chamo-me Joana. Joana Lima. Muito gosto.
— A Joana está em Poços faz dois meses. Veio de Portugal. Trabalha com a minha mãe na distribuição. – Joana não conseguia deixar de ficar embaraçada com o olhar ternurento que Luciano lhe lançava – A Kren foi minha professora. É a pessoa que mais conhece sobre a nossa cidade, nosso património, cultura. Talvez possam conversar sobre seu avô.
— Seu avô é mineiro? – inquiriu a professora
— Foi para Portugal muito novo e depois voltou. Eu nunca tinha vindo cá, é a primeira vez.
— Passe lá na escola, Luciano te dá o endereço. Te mostro os arquivos da cidade.
— Quem sabe te interessa.
Joana assim fez. Aceitou o convite e, numa das folgas rotativas, atravessou a cidade ao encontro de Kren. A escola em que trabalhava era lindíssima: uma cor âmbar, com grandes janelas em madeira e as portadas trabalhadas. Os corredores, cheios de jovens, conservavam os tetos em madeira e o chão em linóleo denunciava uma modernização modesta no edifício. Atravessando o hall de entrada, descobria-se um grande recreio rodeado de árvores. No topo, uma torre vigiava as montanhas:
— Dizem que à noite dá para ouvir uma mulher, lá, bem no alto, cantando. Vamos, vou te mostrar a biblioteca.
A biblioteca situava-se no lado direito do edifício, voltada para a floresta. Kren era a professora bibliotecária responsável por incentivar dezenas de alunos a visitarem- na diariamente. Uma sala ampla, rodeada de janelas que deixavam de lado qualquer necessidade de luz artificial. Um leve aroma a bolo de laranja invadia o espaço, agora habitado por uma senhora com ar simpático e óculos fundo de garrafa. Na rádio alguém cantava “vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais que dois”.
— Entre, fique a vontade – o aroma a laranja vinha decididamente dali: em cima da mesa, um bolo feito nessa manhã aguardava a visita da amiga de Luciano. Nesta sala, as janelas eram ligeiramente mais modernas, talvez numa expetativa de esconder o calor do verão quente do interior. Joana não se lembrava da última vez que tinha sentido aquela humidade: os dias arrefeciam cada vez mais, encurtavam a claridade do dia e adivinhavam regressos a casa mais cedo. Tinha saudades de Portugal, sabia-o, apesar de lhe ser improvável voltar, depois de anos de uma batalha que, apesar de sair ilibada, lhe custara o futuro. Parecendo que adivinhava os seus pensamentos, a senhora com ar simpático interrompeu o olhar distante de Joana:
— E você é de onde, em Portugal?
— Cartaxo. Sou de Lisboa mas por último vivia no Cartaxo.
— Não conheço. Lisboa é uma cidade linda.
— É, e tem uma luz muito bonita. O Cartaxo fica a uma hora de Lisboa, mais ou menos. É uma cidade pequena. – Joana sabia que não era uma descrição justa, e contudo
– não tem nada de especial.
Diante da sala em, descobria-se o parque de estacionamento reservado aos funcionários. Bem apertados, daria para uns vinte carros. Foi no meio de vários modelos, na maioria brancos e cinzentos, que a viu. Os olhos de Joana humedeceram.
— Uma Kangoo amarela, que linda.
— Gosta? É do Sr. Álvaro, um dos seguranças mais antigos da escola. – disse Kren, também ela uma das professoras mais antigas da instituição.
Ambas se sentaram na mesa corrida de madeira e acompanharam as fatias de bolo, entretanto já cortadas pela senhora de óculos com ar simpático, com café acabado de fazer. O café tinha um sabor delicioso; já Luciano tinha chamado a atenção dos vários tipos de café que Joana provaria em Poços de Caldas. Devorado o bolo caseiro, a professora levou Joana a conhecer a biblioteca.
— Quem sabe encontramos mais sobre seu avô – insistia Kren – Como se chamava?
— António Lima. Deve ter nascido por volta de 1926.
— Está de folga amanhã? – perguntou Kren – Vou ver o que acho, e te passo.
Joana trabalharia no dia seguinte, adiando o encontro para a semana seguinte. Apesar da hospitalidade da professora naquele dia, estava desejosa de regressar ao seu pequeno quarto alugado.
Ao chegar a casa, viu, do lado de fora da varanda, um pequeno pássaro que, detetando movimentos no interior da sala, logo voou. Nessa noite, Joana pensou nas mãos de Luciano a tocar o tamborim e sorriu antes de adormecer.
Joana gostava da função que desempenhava no supermercado. Por um lado, ajudava-a a conhecer melhor a cidade: sabia o nome das ruas quase de cor, sem nunca as ter pisado. Cláudia tornara-se a sua maior aliada e havia qualquer coisa nela que a desarmava. Cláudia queria saber mais sobre a história de Joana, que lhe adiantou ir visitar o Museu Histórico e Geográfico no dia seguinte, com Kren.
— A Kren é incrível. Me ajudou muito com Luciano quando ele nasceu. Eu era muito jovem. Você já conheceu a associação?
Joana desconhecia completamente a que Cláudia se referia. Remeteu-se ao silêncio.
— A Kren foi uma das figuras principais na luta pela escolarização do povo indígena em Poços. Começou a dar aulas muito jovem. Depois, criou a associação e começou a dar aulas nas comunidades indígenas. O Luciano ia para lá, bem pequenino, e depois começou a dar aulas de música lá. Pergunta para ela se você pode conhecer. Cláudia relatava estas novidades enquanto saboreava um pastel de queijo: com o auxílio dos guardanapos de fraca qualidade oferecidos pelo quiosque, Cláudia erguia uma barreira em forma de papel entre a boca e Joana.
No dia seguinte, Joana acordou cedo. Tinha encontro marcado com Kren a meio da manhã, mas o sol mal nascera quando despertou. Não conseguia deixar de pensar naquela mulher misteriosa. Inquieta, abriu o livro pousado na mesa da cozinha. Olga Savary dizia-lhe: “Antes que me esqueça, Poesia, as palavras não só combato: durmo com elas”. Chovia. Se tivesse tido uma filha, pensou Joana, ter-se-ia chamado Poesia. Colocou-se debaixo do chuveiro quente e estremeceu com o latir de um cão nas traseiras.
Ao longo de semanas, Joana e Kren tornaram-se presenças assíduas na vida uma da outra. Visitaram museus, bibliotecas e centros de documentação, em busca da vida de António Lima. Joana ansiava pelos encontros com a Professora e tinha até começado uma biografia dos seus antepassados: divididos por cores, os nomes ocupavam num caderno a4 verde florescente várias páginas, com recortes de jornal e pensamentos escritos a lápis. O caderno florescente destacava-se da confusão de papéis instalada na mesa da cozinha.
Frequentava a associação de Kren uma vez por semana com Luciano: enquanto o jovem ensinava música às crianças, Joana lia histórias a partir da biblioteca instalada numa casa de madeira no pátio. Na parede, havia desenhos de flores, animais e montanhas. As cores eram tão vivas que, a Joana, parecia nunca as ter visto. As crianças
sentavam-se à sua volta, faziam perguntas sobre o CR7, abraçavam as suas saias e elogiavam-na, numa inocência e bondade que só as crianças conseguem ter. De início, a diferença de sotaque confundia-os: falariam a mesma língua? Joana aprendeu a não atropelar as palavras ao falar, a colocar sílaba atrás de sílaba, a saborear cada som produzido pelas vogais. As meninas faziam perguntas sobre o seu cabelo, invariavelmente atado, ofereciam-lhe brincos e colares de missangas coloridas. Kren deixara de ir tantas vezes: a idade começara a pesar-lhe no corpo e reduzia-lhe o tempo que conseguia estar em pé. Joana visitava-a na biblioteca, relatando os progressos das crianças.
Ganhara um hábito: à noite, no regresso a casa, escapava das investidas de Luciano para a acompanhar depois do turno, atravessava a ponte situada junto ao teleférico e posicionava-se bem no centro, a fim de contemplar sozinha aquele curso de água. O cheiro fazia-lhe lembrar as idas à lagoa com o seu pai, em pequena. O borbulhar das pequenas ondas ajudadas pelo vento contra o cimento despertavam-na e, ao mesmo tempo, embalavam-na. Já não acordava a meio da noite com a cara do homem que deixara paraplégico, os ruídos da cidade sobrepunham-se aos latidos que, de vez em quando, lhe assaltavam ainda a cabeça. Imaginava-se na berma do rio, a ser levada.
Durante dois meses, nada soube de Kren. Joana continuava a preencher os seus dias entre os turnos no armazém, as idas à associação e a investigação que, entretanto, ganhara corpo num documento word no computador. Como se fosse uma carta, descrevia a sua vida em criança, o acidente dos pais, a casa no Cartaxo e, sobretudo, muitas perguntas: porquê ter desaparecido? Joana descobrira que o seu avô se mudara para Poços em 1973, ano em que terá conhecido Sandra, que viria a ser a sua companheira até à sua morte, em 1992. Ia muitas vezes ao cinema, sabia-o pelos recibos do São Luiz. Foi sepultado no cemitério da Saudade onde, em 2001, se juntara Sandra.
Naquele dia, levantara-se tarde, aproveitando para recuperar de uma semana movimentada no trabalho com a chegada das promoções de Natal. Não pensou no que ia vestir, agarrou numas calças brancas de linho e uma blusa verde. Assentavam-lhe bem. Percorreu a cidade a pé, entrou nas alamedas rodeadas por árvores que faziam sombra a mármores e às flores deixadas por familiares e amigos daqueles que ali jaziam.
Não foi fácil encontrar o seu avô, mas ao fim de quase uma hora e da ajuda do funcionário, ali estava a sua fotografia: muito branco, de bigode curto, magro, talvez a fotografia tivesse sido tirada muito pouco antes de falecer. Ao lado, Sandra, numa fotografia com melhor qualidade, mostrava-se uma senhora alegre, de sorrido aberto, lábios pintados e, arriscava Joana, permanente no cabelo. Faziam um par bonito, pensou.
À saída, Joana reparou na senhora que vendia flores. Gerberas amarelas. Pediu um molhe de cinco flores e seguiu caminho. Talvez em direção a casa.
Joana regressou ao cemitério poucos dias depois. Levantara-se cedo, para mais um turno no armazém, quando vê da varanda o corpo musculado de Luciano à porta do prédio, com o uniforme de massagista e o telefone na mão: “Kren”, repetia, “a Kren”.
Kren falecera nessa noite. Pouco se soube sobre os últimos dias da Professora, que se fechara em casa com o apoio de uma enfermeira que, no velório, relatara a existência de um cancro que se alastrou pelo seu corpo. As pessoas repetiam as qualidades da docente, ativista das crianças e da cultura na cidade. Luciano, abraçado à sua mãe, dirigia olhares a Joana, surpreendido ao vê-la afastada, olhar suspenso, como se estivesse à espera. As crianças da associação pintaram um painel cheio de cores vivas, ornamentado com missangas e frutos secos. As cerimónias realizaram-se sem atrasos e ao final da tarde estavam finalizadas. Antes de sair, a senhora simpática de óculos da escola deteve-a:
— Passe lá na biblioteca. Kren deixou algo para você – assentando a mão leve no seu ombro – Não esqueça.
O caminho até casa foi um ápice. Em cima da mesa da cozinha, o computador aberto, o caderno florescente e alguns presentes de Natal de colegas. Fechou as janelas. Deitou-se na cama e, sozinha, de costas voltadas para cima, gemeu de dor. Era véspera de Natal.
Joana esperou o reinício das aulas para voltar à escola e cumprir prometido. Atravessou os corredores e lembrou-se da primeira vez que tinha lá entrado: o espaço parecia cada vez maior. Notou diferenças nas paredes, talvez tivessem sido pintadas e, ao fundo, a biblioteca, desta vez vazia. Não cheirou a bolo de laranja. A professora Ana – era esse o seu nome – ajeitou os óculos enquanto pedia a Joana que entrasse. Entregou- lhe um envelope, lá dentro uma carta que Ana pediu que não abrisse à sua frente. Joana agradeceu com um abraço.
À saída, passou pelo parque de estacionamento. Guardara o envelope no bolso traseiro das calças, onde a sua mão descansava e oferecia proteção ao pedaço de papel que guardava. As poucas viaturas tornaram fácil a tarefa de encontrá-la: ali estava ela, no mesmo sítio. Reparou que na janela de trás brilhava um papel escrito à mão. Aproximou- se para ler: vende-se Renault Kangoo 2002. Retirou do bolso o envelope, desdobrou com cuidado o papel amarelado. Joana leu a carta de Kren, pensou em Luciano, os seus olhos brilharam e a boca tremeu. Joana verificou o saldo contabilístico no aplicativo do banco e, num respirar fundo, sem duvidar, digitou o número indicado na janela da viatura.
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Last modified: 04/09/2025