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Para dançar na cerca elétrica

Por Rejane Gonçalves

Para ler com um travo na boca.

Um cravo deitado na língua, um cravo-flor pendendo dos lábios, um outro na mão a ser ofertado, meio sujo do sangue daquele que na outra mão foi cravado, mais um a ser dedilhado, mais outro tão dolorosamente entranhado. Essa é minha percepção de leitora, meu presente para mim mesma (que posso compartir); a tradução do sentimento que me percorreu ao finalizar a leitura do livro – para dançar na cerca elétrica. Parti das várias roupagens contidas no significado da palavra cravo: cheiro, sabor, beleza, cor, música, dor. Maturar os olhos e o pensamento no molho encorpado do enxergar é fundamental para garantir a boa passada de cada pé, combiná-la aos ousados saltos, bem como à imersão nos precipícios da mente – nos caminhos sinuosos da leitura. Tive o cuidado de em nenhum momento me furtar à dança na cerca elétrica; posso até ter pecado no ritmo, torcendo-me num descompasso inestético, mas o desequilíbrio faz parte do espetáculo e traz consigo a convulsão de movimentos necessária ao retorno à cadência desejada. Basta enfrentar o medo da beleza, seus clarões, abismos e funduras descomunais. Confesso ser um tanto avessa aos clarões, eles existem para que os olhos se fechem. Acho. Alio-me, pois, com mais naturalidade à escuridão, ela se presta, com certa paciência, com um tipo respeitoso de destemor, às adaptações do escrutínio da visão, do percebimento, e detém o poder de se transformar, aos poucos, num nascedouro de delicada luz. Não é invasiva, nem passa à frente da percepção, não tem o propósito de desvendamento do texto, apenas o alarga, dentro duma penumbra que realça a intimidade dos sentidos, sem forçá-los, sem nenhuma prática de intimidação. Penso em você, leitor (meu irmão), nesse maravilhoso ofício do sentir e comungar palavras, livre do compromisso, insano, de desvendá-las, interpretá-las, quando basta senti-las, como se fossem – elas – uma roupa que vestimos e experimentássemos sua tessitura distribuir-se desigualmente pelo corpo, até as diferenças se apropriarem de um ponto em comum. Qual será a coreografia de sua dança na cerca elétrica, pergunto-me, não para julgá-lo, só pelo gosto da contemplação. A autora – Conceição Rodrigues – já criou o palco, dispôs o cenário, soprou, fez girar, numa espiral de redemoinho, as palavras, essas atrizes que serpenteiam entre os dizeres – neles – por cima e por baixo deles, esticam-se, enroscam-se, curvam-se, saltam, estiram-se, gingam, belamente oscilam, meneiam. Caso aceite o convite para dançar, observe, essa dança terá acréscimos, novas fissuras, cortes, outros choques, porque também se compõe do seu pensamento, desejos, medos, percepção, intuição, saber, ignorância, tudo isso ou aquilo, ou o vazio, esse nada, que faz com que você seja você. Daí, agora, que chegou a vez de você dançar, presumo, de experimentar sua própria coreografia, nascida no decorrer de uma atenta leitura, que lhe será pródiga em dons, faça, então, um proveitoso uso deles: pause, acelere, expanda, diminua, escolha o próprio tom. Escolha (esta) ancorada na sua disponibilidade d’alma, nos meandros do seu pensar, no entregar-se ao ato reflexo de abrir ou fechar os olhos, de orquestrar o claro-escuro, de reger o meio-tom. Saia do marasmo, da extenuante zona de conforto, respeitável criatura-leitor, execute sua própria dança na cerca elétrica, arrepie-se, desequilibre-se, volte ao prumo, ou não. Só não desista. Dance!   Dê-se a oportunidade de ter um dizer (bem seu) sobre o dizer transcendente dessa admirável criatura-autora que murmura na hipnotizante dança da cerca elétrica:

aquele homem, mesmo homem,
              faminto congela
              temente a qualquer gesto
              com o jardim de seu pensar
              aquele homem não é mesmo um homem
              é um rato

Rejane Gonçalves

Olinda, 04 de agosto de 2025

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Last modified: 16/09/2025

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