Written by 22:30 ARTIGO

Do fogo ao papel: da oralidade aos livros.

Por Alex Brito

Imagem gerada por IA mostrando um skomorokhi “Contador de história” russo.

Desde que o ser humano descobriu a palavra, contar histórias tornou-se uma forma de sobrevivência, ensino e conexão. Antes do livro, da caneta e da tipografia, a voz humana foi o primeiro meio de registrar o tempo. E mesmo hoje, cercados por telas e notificações, a arte da narrativa oral continua a resistir — viva em praças, feiras, saraus e rodas de conversa. No Brasil, em Portugal e até na Rússia — países que abrigam as embaixadas da Revista Aorta — a tradição oral não apenas sobrevive, mas também inspira novas formas de literatura, teatro e poesia. Esta matéria é um convite a atravessar fronteiras, tempos e geografias para entender como a oralidade moldou (e ainda molda) o que hoje chamamos de literatura.

O Brasil, em muitos aspectos culturais, é um eco das tradições africanas. Na África Ocidental, os griôs (ou jeli, ou ainda djeli) são os grandes mestres da palavra. Mais do que contadores de histórias, eles são arquivos vivos. Detêm a memória genealógica de famílias, a história de batalhas, ensinamentos morais e épicos ancestrais.

A tradição dos griôs surgiu há mais de dois mil anos em países como Mali, Senegal e Guiné. Munidos de instrumentos como a kora e o balafon, eles transmitem conhecimento através de cantos, poesia e narrativa. Cada história narrada é um ato de resistência cultural contra o esquecimento e a colonização da memória. Quando os povos africanos foram trazidos de forma forçada para o Brasil durante a escravidão, vieram também as sementes dessas narrativas. E foi a partir desse enraizamento que a oralidade encontrou novas formas de expressão em terras brasileiras.

No Brasil, a oralidade africana fundiu-se com elementos indígenas e europeus, criando um caldeirão cultural de formas narrativas. O exemplo mais emblemático é a literatura de cordel, nascida no Nordeste, que surgiu no final do século XIX, mas cuja alma é muito mais antiga. Cordelistas penduram seus folhetos em cordas (os cordéis) durante feiras e mercados populares. São histórias de heróis, amores impossíveis, causos da vida real e fábulas de ensinamento moral. As capas, muitas vezes produzidas em xilogravura, transformam o texto em arte visual.

Além do cordel, a cultura nordestina deu origem a outra expressão da oralidade: a cantoria de viola, onde os repentistas protagonizam duelos poéticos improvisados. Com ritmo, métrica e humor, eles mantêm viva a tradição da rima falada, muitas vezes passando de geração em geração. Essa oralidade brasileira é, ao mesmo tempo, palco, resistência e celebração.

Antes de o cordel ganhar as feiras nordestinas, existiam em Portugal os chamados papéis volantes — folhetos populares vendidos por ambulantes entre os séculos XVII e XIX. Esses impressos contavam histórias de amores, tragédias, milagres e crimes, muitas vezes compostos em versos rimados e com linguagem acessível ao povo.

Os papéis volantes foram fundamentais para a transição da oralidade para o mundo escrito na tradição lusófona. Eles eram lidos em voz alta em praças e tabernas, reunindo pessoas ao redor de um contador. Esta tradição viajou com os colonizadores e encontrou no Brasil solo fértil para transformar-se na literatura de cordel. Hoje, a herança dos papéis volantes portugueses é reconhecida como parte da memória literária popular, com estudos acadêmicos e acervos especializados preservando essa produção.


Na Rússia, uma das embaixadas literárias da Aorta, também tem suas raízes profundamente entrelaçadas com a tradição da narrativa oral. Durante a Idade Média, os skomorokhi eram artistas itinerantes que percorriam vilarejos com música, teatro e contação de histórias.

Esses artistas levavam diversão, crítica social e, sobretudo, as byliny — canções épicas que narravam as façanhas de heróis populares como Ilya Muromets e Dobrynya Nikitich. Por séculos, essas histórias foram transmitidas exclusivamente de forma oral, até serem sistematizadas e transcritas a partir do século XVIII.

Essa tradição moldou não apenas a literatura russa posterior, mas também o teatro popular e o modo como os russos preservam e recontam suas memórias coletivas.


Um fio invisível que costura continentes

Brasil, Portugal e Rússia: geografias distantes, histórias políticas distintas, mas com um elo invisível e poderoso — a persistência da voz humana como forma de registrar o tempo.

Do griô africano ao cordelista brasileiro, do papel volante português ao skomorokh russo, o que se repete é o desejo de contar, ouvir e transmitir.

Hoje, seja no palco de um slam urbano, numa live de um poeta de periferia ou nas páginas de um livro de literatura contemporânea, a oralidade segue viva, adaptada, reinventada.

Na Revista Aorta, seguimos esse fluxo: o de transformar voz em palavra escrita, e palavra escrita em eco eterno.


Fontes e referências:

Não perca nossas novidades!

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

Visited 1 times, 1 visit(s) today

Last modified: 16/06/2025

Close

Olá Aortano👋,
que bom te ver por aqui.

Inscreva-se e receba em primeira mão a nossa newsletters.

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.