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Em meio ao Carnaval: uma tropicália

carnaval tradição e crítica social nas celebrações culturais mundiais

Desengane-se o leitor se entender que o Carnaval se fica só pelas cidades grandes e grandes desfiles de escolas de samba do Brasil. Aqui lhe vamos mostrar que o Carnaval é um movimento mundial de sátira social e política nas suas mais diferenciadas formas, feitios e culturas. Cor e animação é o que não podem faltar de modo algum.

Sábado, 03 de fevereiro de 2024. Apesar do sol escaldante, a população se aglomera nas ruas da cidade alta para prestigiar um evento já tradicional do pré-carnaval de Pernambuco: a corrida dos bonecos de Olinda. Uma competição inusitada, mas que já faz parte do calendário de prévias carnavalescas da cidade. É apenas o início da jornada que os bonecos enfrentarão nos dias seguintes. O vencedor nem sempre é o ponto mais importante. O som da corneta, que anuncia a largada, ecoa pelos quatro cantos, lembrando que dias de alegria estão por vir. É no carnaval que os problemas da realidade dão lugar ao lúdico e às fantasias. A percussão, as coreografias, o frevo, juntos na função de aliviar os percalços da vida. Mas não se engane. O carnaval não fecha os olhos para a pauta do dia. 

Além das paródias que ganham força entoadas na voz do folião, os bonecos gigantes também não perdem a chance de lembrar as figuras que permeiam as notícias dos jornais, da TV e as capas de revista. Ou melhor, hoje em dia devemos considerar as redes sociais, plataformas de vídeos e canais de streaming, incluindo o fenômeno dos memes. Ao longo dos cinco dias de carnaval, os bonecos trazem na face figuras da política, das artes e do dia a dia da comunidade. Girando seus longos braços, homenageiam personalidades internacionais, ilustres locais e, claro, fazem graça daqueles que caíram na boca do povo por motivos não tão louváveis. Rodopiam nas ladeiras de Olinda desde 1932 com a criação do primeiro boneco, o Homem da Meia-Noite, confeccionado pelas mãos dos artistas plásticos Anacleto e Bernardino da Silva. E, assim, podemos ver lado a lado o Hulk da Marvel e o David Bowie; o presidente Lula e o Bolsonaro. 

Elaborados com tanto esmero e cuidado pelos artesãos, eles têm até um museu. Um casarão centenário no Alto da Sé, onde são apreciados pelos turistas durante os meses que descansam. Mas, falando a verdade, o que cada um desses gigantes quer mesmo é cair na folia, entretendo a multidão e celebrando a cultura pernambucana. 

Imagine então a tristeza que foi o período da pandemia de Covid19, quando o folião não vestiu sua máscara de pular carnaval. Das janelas saudosas, os moradores de Olinda não puderam reverenciar o Homem da Meia-Noite, hoje considerado um Calunga – termo da umbanda que designa uma das suas divindades secundárias. Em 2021, foi preciso realizar seu desfile de forma virtual, através de uma live nas redes sociais. Mais doloroso foi em 2022, quando o gigante surgiu em frente à sede na Estrada do Bonsucesso, mas sem seus súditos ao lado. Vestia seu fraque bem alinhado, sua elegante cartola, a charmosa gravata borboleta e também uma máscara para lembrar-nos da importância deste ítem de proteção. Um detalhe: a máscara era transparente para que víssemos seu largo sorriso e o dente dourado brilhando. A aparição, novamente, só seria transmitida online. 

Aquele ato do calunga, na meia-noite do sábado de Zé Pereira, apesar de cutucar nosso coração com uma pontiaguda saudade, foi uma demonstração histórica da força das tradições, festejos e crenças do lado de cá do Atlântico. É como uma corda que desfia, mas não arrebenta. Um galho que enverga, mas não se parte. O carnaval de Olinda, nesta esquina do Brasil, reflete na face de cada boneco os fatos da época. Mas sejam dias calmos ou dias turbulentos, o povo pula, dança, sorri das mazelas e resiste igual os bonequeiros que carregam os pesados gigantes com orgulho. 

Do outro lado do Atlântico e no meio dele, acontece a que é considerada a maior mostra de teatro popular do mundo, esta manifestação cultural tem lugar no Carnaval da Ilha Terceira, no arquipélago dos Açores em Portugal. Este Carnaval caracteriza-se por cinco dias de verdadeira euforia ao redor de toda a ilha onde a identidade transmitida de geração em geração, num trabalho de defesa e salvaguarda realizado pelos habitantes da ilha Terceira. Esta identidade idiossincrática, das vivências, festividades e do percurso de valorização do Carnaval da ilha Terceira com as suas Danças, Bailinhos e Comédias de Carnaval foi distinguido como Património Cultural Imaterial, durante as comemorações do 20.º aniversário da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da UNESCO. 

Diferente dos diversos carnavais existentes ao redor do mundo, o Carnaval da ilha Terceira distingue-se pela sua singularidade e movimenta milhares de pessoas por toda a ilha de sexta-feira a terça-feira de Carnaval. A ilha Terceira transforma-se num palco de atores e de músicos, cheia de animação, música e teatro de amadores para espectadores profissionais.

Caracteriza-se por dezenas de grupos de pessoas a subirem aos vários palcos espalhados pela ilha, vestidos a rigor, para dançar as danças e bailinhos ensaiados durante os meses que antecedem esta época. Esta manifestação popular tem lugar pelos mais de trinta salões dispersos por toda a ilha, que se enchem de pessoas até de madrugada para assistir às atuações que por lá vão passando.

Estas danças e bailinhos podem ser: danças de pandeiro, na qual o puxador faz uma coreografia com um pandeiro, danças de espada, os bailinhos e as comédias. Caracteriza-se pela sátira social e política, numa elevação de costumes e falares, expressões e vivências.

Igualmente e já em Portugal Continental, falemos também dos Foliões do Carnaval de Torres Vedras. Cerca de 900 foliões integram a Embaixada Real com o intuito de promover aquele que é considerado o mais português de Portugal Continental com muita folia, animação e espontaneidade, que tanto caracterizam o evento carnavalesco.

As chamadas matrafonas – homens vestidos de mulher a rigor ou com graça, existindo até o Rei e a Rainha do Carnaval também eles verdadeiras Matrafonas Reais – invadem as ruas em cortejo por Torres Vedras, ladeados por milhares de pessoas oriundas de todo o país que se deslocam para ver não só a centenas de matrafonas, mas também os carros alegóricos de dimensões absurdas que circulam pelo arraial transmitindo mensagens e indirectas políticas e da actualidade. Os seus cabeçudos, em tudo idênticos aos de Olinda abordados no início desta matéria, abrem o cortejo em jeito de dedo incisivo naquela opinião popular mais crítica que qualquer imprensa possa sequer se atrever.

Este ano o tema escolhido foi ‘O Futuro’ e claro que não podia faltar o dedo na actual ferida Europeia, a guerra que se faz sentir na zona Leste.

Neste olhar Carnavalesco, convidamos todos a explorarem o fascinante universo das expressões artísticas que permeiam as escolas de samba, nas quais a efemeridade da festa se entrelaçou com pinturas na pele, a explosão de cores nas alegorias e a marcante influência da Tropicália. É uma reflexão profunda sobre as artes visuais que deram vida a essa celebração única, assim como, a crítica social que se entrelaça de maneira intrigante como vimos. Por trás das pinturas e alegorias exuberantes, há narrativas que refletem não apenas a celebração, mas também as questões sociais e políticas que permeiam a sociedades nas quais o Carnaval actua.

As escolas de samba, muitas vezes, utilizam seus desfiles como plataformas para abordar temas relevantes e urgentes, como desigualdade, injustiça, racismo e exclusão social. Através de suas alegorias e enredos, elas lançam luz sobre questões que afetam diretamente as comunidades menos privilegiadas, buscando promover a conscientização e a reflexão.

As caracterizações e maquiagens, por sua vez, tornam-se veículos poderosos para transmitir essas mensagens. Por meio de símbolos, cores e até mesmo de cenas detalhadas pintadas nos corpos dos foliões, os artistas conseguem provocar emoções e despertar consciências, levando o espectador a refletir sobre as injustiças e desafios enfrentados pela sociedade.

Além disso, a influência da Tropicália na crítica social do Carnaval é inegável. Assim como os artistas desse movimento desafiaram as convenções estabelecidas em sua época, as escolas de samba e os artistas plásticos do Carnaval frequentemente buscam questionar o status quo, desafiando normas e preconceitos através de suas criações.

Mais do que adornos festivos, as maquiagens do Carnaval foram uma forma de libertação e autoexpressão. Em um país de contrastes, as faces coloridas dos foliões foram manifestações visuais de emoções, filosofias e manifestações culturais, tornando a festa uma tela viva que refletiu o espírito vibrante do povo brasileiro.

Portanto, é possível afirmar que as expressões artísticas do Carnaval não são apenas festivas, mas também profundamente engajadas com as questões sociais de seu tempo. Ao celebrar a diversidade e a cultura brasileira, elas também nos convidam a refletir sobre os desafios e lutas que ainda enfrentamos como sociedade, tornando-se assim um palco para a crítica social e a busca por mudanças positivas, uma tropicália.

Nota de rodapé: esta matéria foi escrita com português brasileiro e português de Portugal.

Por Lou da Silva, Marcia Vieira Ávila e Shirlei Gall

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Last modified: 10/07/2024

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