Por: Rafaela Lacerda
A literatura feita por mulheres ganha cada vez mais projecção no mercado livreiro actual. Longe vão os tempos da discriminação, da menorização da escrita da mulher, da utilização de pseudónimos masculinos, longe vão. Será que vão assim tão longe? Estamos no século XXI, muitos acham que os direitos das mulheres estão adquiridos e nada é preciso para os fazer valer. No entanto, uma igualdade consagrada na constituição, ainda que um passo decisivo e um ponto de charneira crucial na valorização da mulher e do trabalho por esta feito, não é o suficiente para a consagrar nas mentalidades vigentes. Ainda, e atrevo-me a dizer, cada vez mais, vivemos numa sociedade patriarcal, em que as mulheres têm de trabalhar o dobro para alcançar metade do sucesso dos congéneres masculinos.
O mundo editorial é disso um exemplo cruel. A escrita feita por mulheres é imediatamente rotulada como uma escrita feminina, o que não é, de todo, o mesmo, já que este último adjectivo tem intrínseca a conotação de fragilidade e de submissão a que o papel social da mulher-mãe, da mulher-esposa, da mulher-cuidadora está ligado. Temas fortes, contundentes, aguerridos, causam admiração e demonstram coragem quando abordados por homens, mas choque e até repúdio se a autoria for reclamada por uma mulher. Para se resguardarem do julgamento prévio, muitas mulheres na história da literatura recorreram a pseudónimos masculinos, nomes neutros ou à utilização de iniciais, deixando, numa primeira impressão, em aberto o género do autor. Exemplo disso são George Sand, George Eliot, Rob Thurman, J. K. Rowling, E. L. James e, recentemente, a jovem R. F. Kuang, todas elas nomes inquestionáveis de sucesso da literatura mundial, com temáticas fortes ou que, de algum modo, poderão ir de encontro aos padrões associados à tradicional escrita feita por mulheres. Se, por um lado, poderão ser consideradas astutas, estas escolhas acabam por ser perniciosas e dar mais poder ao patriarcado e à ideia pré-concebida que há sobre a qualidade dos textos feitos por mulheres, numa atitude que é criada pelas próprias mulheres em conivência com o pensamento misógino vigente.
A autora J. K. Rowling publicou a série Cormoran Strike sob o pseudónimo Robert Galbraith. Justificou o facto com o querer que os livros vingassem por si e não por algum tipo de associação ao seu já tão famoso nome. Nem o próprio editor sabia a verdadeira identidade do autor, que, quando a descobriu, lhe disse «nunca pensei que uma mulher escrevesse isto», pelo que ela ficou orgulhosíssima, segundo palavras da própria. Como mulher, como autora, muito me entristece, revolta, talvez seja a palavra mais correcta, que uma escritora se sinta orgulhosa por alguém pensar que uma mulher não poderia escrever determinado texto.
Independentemente do género do narrador, das personagens, dos temas, as mulheres, as autoras, podem escrever, e fazem-no, como os homens. E esse grito de emancipação tem de ser dado pelas próprias mulheres escritoras, que não podem ter receio de assumir aquilo que são, sob pena de nunca serem levadas a sério numa sociedade que acha que elas ainda não atingiram o estatuto em que os homens se posicionam por direito, aparentemente, biológico.
Este texto está escrito em PT-PT e segue as regras do antigo acordo ortográfico.
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Last modified: 21/11/2024