Por Rafaela Lacerda
“Perdi muito tempo até aprender que não se guarda as palavras. Ou você as falas, as escreve, ou elas te sufocam.” Quem o afirmou foi Clarice Lispector, nome maior da literatura lusófona e mundial. Palavras que sufocam quem as não escreve e que moldam o pensamento de quem as lê. É essa a força da palavra escrita, o poder de intervir no outro, de mudar o curso dos acontecimentos, de alterar um sentimento por mais ínfimo que este seja. Ninguém volta igual após a leitura de um livro de Clarice, assim como ninguém permanece o mesmo depois de ler Vergílio Ferreira. Paradigmas do existencialismo no seu estado mais profundo, estes autores levam os leitores a uma dolorosa transformação que passa pelas aflições mais basilares do ser humano: quem somos, para que somos, como nos justificamos. E se, nestes, temos o existencialismo do indivíduo perante ele próprio, noutros está patente o existencialismo do indivíduo perante ele próprio inserido num colectivo, porque é impossível a vivência do eu sem o outro. E aqui surgem nomes como José Saramago e Bertolt Brecht, cuja obra reflecte esta confrontação de quem somos, para que somos e como nos justificamos, num contexto colectivo e politicamente engajado. Porque a literatura é um acto político. Uma tomada de posição, uma denúncia, uma escolha. De Gil Vicente a Eça de Queiroz, observamos a crítica social e política sem pejo aos vários quadrantes da sociedade. Durante a ditadura, assistimos a engenhosos ardis literários de autores como Urbano Tavares Rodrigues, Natália Correia ou Miguel Torga a tentarem passar as suas mensagens de forma velada e, mesmo assim, a verem os seus textos riscados pelo lápis azul da censura. E mesmo quem, por se querer assumir neutro, clama que não está politicamente engajado, está a tomar uma posição ao ser conivente com o sistema vigente e a não usar as ferramentas que tem à disposição para criticar, apontar o dedo, denunciar o erro.
Assistimos, na produção literária hodierna, a uma cultura da literatura pronta a comer, à boa maneira das cadeias de hambúrgueres que nos servem a refeição em cinco minutos e cujo único beneficiário é o fornecedor do hambúrguer e não o seu consumidor que, meia hora depois, já esqueceu que o comeu. O mesmo com alguma da literatura da moda. Um onanismo literário do autor, que em nada acrescenta o leitor, pois, meia hora depois, este já esqueceu o que leu. Vivemos numa era de facilitismo e o leitor anestesiado é mais facilmente domesticado do que o leitor espevitado, por isso, é muito mais vantajoso para quem detém poder promover estas leituras amorfas e desprovidas de sentido crítico. No entanto, o autor não pode esquecer que tem na mão uma das armas mais poderosas do mundo: o poder de passar informação, de emitir uma opinião, de constestar, de mudar o mundo. Nem que seja uma parte infinitesimal do mundo de alguém que tropeçou num texto por acaso. Por isso, lutemos sempre para as palavras não nos sufocarem e lembremo-nos de que temos na mão uma arma pronta a disparar. Usemo-la com prodigalidade.
Este texto foi escrito em PT-PT de acordo com as regras do antigo acordo ortográfico.
Last modified: 19/12/2024
Tão verdade o que tu dizes. Podemos usar a palavra como arma de diversos modos. Podemos chamar a atenção para muitas coisas que achamos que precisam de ser vistas.