Written by 18:11 CONTO

O velho e o Lago

A solidão, por vezes, será a única companhia segura e confiável, mas haverá o dia em que a própria solidão estará acompanhada de sentimentos bons.

A solidão, por vezes, será a única companhia segura e confiável, mas haverá o dia em que a própria solidão estará acompanhada de sentimentos bons.

Sentando estava eu no velho banco em frente ao lago. Esse banco de madeira sempre me deixa com dores nas nádegas por conta de suas tábuas afastadas. Eles parecem reformados, brancos e ainda com cheirinho de tinta se misturando com o aroma do carvalho centenário, que no outono lança suas folhas ao vento.

O lago parece um pouco mais escuro que o costume. Os patos estão nadando com seus filhotes, até trouxe de casa um velho saco de papel com pedaços de pão que não ousei comer por vários dias.

Olho à minha volta e vejo o parque mais convidativo que na estação anterior. Não sei por que, mas gosto muito desse clima de romance: folhas secas caindo das árvores, os casais embaixo delas namorando, até os pássaros cantam da forma mais leve, romântica e bela possível. Entretanto, isso também me lembra da minha solidão. Talvez seja isso que sempre via nos livros dos romances que costumava ler na minha infância, nos quais todos os apreciadores dessas sensibilidades acabavam sozinhos.

Pego, ao meu lado direito, um velho caderno de anotações que sempre levo comigo para onde vou, pois sempre que posso gosto de escrever sobre o que vejo. Hoje com certeza será sobre esse clima frio, mas de romance no ar.

Às vezes sinto uma solidão, um vazio nesse banco e quando olho para os lados pareço estar procurando alguém que se sente ali ao meu lado, sei lá! Talvez somente para conversar ou para dividir o pão dos patos comigo. Mas, enfim… Ninguém está vindo e isso há décadas que espero ou, pelo menos, tenho essa sensação de estar aguardando alguém. À medida que esses pensamentos percorrem minha mente eu vou ali alimentando meus companheiros patos de sempre.

Todos eles vieram correndo com suas patas tortas e engraçadas, em um caminhar nada metódico, nada compassado, em minha direção. Porém, um deles parece ter algum tipo de problema a mais: além de ser um pato engraçado é esfomeado e parece estar excluído dos restantes. Nesse instante, paro de jogar as migalhas para os famintos, que estavam quase declarando guerra entre si, e passo a observar mais atentamente esse outro pato. Franzino, com as patas mais tortas que os demais, sua coloração mais parece que o lago lhe cedeu as suas cores. Enquanto os outros eram uniformes quase todos brancos com poucas variações, ele, por sua vez, era pretinho e parecia mais um filhote de outra espécie.

Levantei-me do banco e nessa hora já não estou mais prestando atenção no romantismo do clima, no parque e, sim, na controvérsia que é a história daquele patinho feio. Talvez minha empatia por ele fosse algo mais pessoal e íntima do que eu imaginava. Eu, por exemplo, sempre fui o patinho feio da minha casa, da minha escola, onde os garotos sempre tinham suas popularidades e eu buscava entrar nos mundos diversos das histórias que via na biblioteca da escola.

Olhar para aquele patinho me fazia lembrar de como me sentia excluído das migalhas que a sociedade lançava. Os outros, famintos para serem aceitos, guerreavam. Mas, será que estar excluído daquela guerra era realmente algo ruim para mim ou isso me tornou quem sou hoje? Esse questionamento vai-me seguir, acredito, o restante da vida.

Caminhei em direção a ele e tentou evadir-se de minhas mãos. Os outros nem se importaram com alguém tentando pegar um dos seus. Talvez porque não o vissem assim, como um dos seus.

– Quem sabe, se algo me acontecesse na escola, na infância, se alguns dos colegas iriam perceber assim como os patos…

Consegui enfim, sem muita habilidade, pegar o patinho feio. Acho melhor dar um nome para ele, pois não acho legal o chamar assim.

– Quem sabe se eu te chamar de chocolate?

Seria um nome muito convidativo, apesar da minha intolerância à lactose e minha diabetes fora de controle, mas é que ele tem a cor de um chocolate meio amargo, o que também poderia falar muito sobre nossas personalidades. Somos meio que chocolates amargos, e as pessoas não estão acostumadas com o sabor peculiar.

Ao colocar ele nos braços começa a ficar agitado e eu fico andando com ele, mostrando o lago. Vou-me afastando dos outros patinhos, olho para o céu, que já começa a ficar com a paleta de cores mais alaranjadas, pois já está próxima a chegada da lua.

O sol está indo embora, vem chegando aquele vento frio do cair da tarde. Os outros patos voltam para a lagoa e nem se dão conta que um deles está em minhas mãos.

Caminhando pelo parque, o Chocolate já está mais acostumado com o calor dos meus braços. Talvez seria assim que iria me sentir se tivesse na infância alguém que me carregasse no colo toda vez que me sentisse excluído. Vejo que o relacionamento com esse pequeno ser mais parece uma sessão gratuita com meu psicólogo.

Continuo a caminhada e vou observando que à noite tudo parece mais silencioso. Diferente da minha mente que nessa hora já está formulando várias questões… Pior que não consigo nem escrever com esse ser pequeno em meus braços.

A lua está linda, cheia e gigante, iluminando todo o parque. Porém, está muito frio.

– Acho que está na hora de ir para casa, espero que me deixem sair daqui com meu novo amigo.

Caminho em direção a entrada, já consigo ver o guarda de plantão, que inclusive é meu vizinho, mas nunca nos falamos além de um cordial bom dia, pois eu não sou muito de sair de casa cumprimentando as pessoas. Sempre acho que elas estão me julgando, como quem julga meu Chocolate.

Passo por ele e como é costume baixo minha cabeça e com os braços cruzados tento meio que esconder o Chocolate. Acelero os meus passos para que aquela situação se encerre logo, ele vem em minha direção e isso faz meu coração disparar. Finjo que não o vejo e continuo andando, ele levanta as mãos e prossegue:

— Boa noite, senhor!

Eu paro repentinamente e sem ter muito o que fazer respondo na mesma altura o cordial cumprimento.

Nesse momento, deixo escapar por entre os braços o tão estressado Chocolate e ele se joga em uma tentativa suicida em direção ao chão. Fico um misto de vergonha e raiva, pois quis simplesmente dar todo carinho àquele pato e ele, assim como outros, me abandonou! Ainda terei que encarar os olhares de julgamento do guarda que, além de tudo, é meu vizinho.

Olho para o Chocolate e ele segue desengonçado e apavorado em direção ao lago do parque, onde estão aqueles que não deram a menor importância à sua ausência, que nem sequer lutaram pela sua presença. Viro meu corpo como quem está prestes a cometer um homicídio de tanta raiva que fiquei daquele ser, e olho para o guarda que também está a observar a cena. Percebo que o olhar dele não era de julgamento, mas de espera.

Penso comigo naqueles instantes, que mais pareciam eternidades, o que será que ele está esperando que aconteça. Essa situação está corroendo minha alma, essa insegurança e incerteza do que está por vir sempre me deixa inquieto e angustiado. Nesse instante, o guarda meio que percebendo toda a minha angústia, decide simplesmente ajudar o Chocolate a chegar mais rápido ao seu destino e eu fico apenas a observar. Poderia aproveitar o momento e sair daquela situação, mas vejo que o guarda sempre olhava para trás, não adiantaria muito fugir.

Ele ajuda o Chocolate a encontrar os seus e volta com um sorriso espantado no seu rosto pálido. Com sua farda toda molhada e cheia de penas, se direciona a mim e apenas toca em meus ombros e expressa para minha surpresa:

— Você não é o primeiro que tenta levar o patinho estranho… Ele tem muitos admiradores aqui no parque.

Eu fico meio sem graça com aquela revelação e retruco quase que imediato as informações vindas do guarda:

— Eu não estava tentando levar esse patinho feio para casa, estava somente tentando mostrar para ele que existe outras possibilidades de vida, de mundo e de prisões que somente essa lagoa…

À medida que ia falando, ele fazia cara de quem não estava acreditando em nenhuma das minhas mentirosas palavras. Mesmo assim continuei com a falsa tentativa de justificar, até que, então, ele me interrompe e coloca na mesa a sua cartada final.

— Está tudo bem, eu entendo perfeitamente a situação, mas deixa eu te dizer uma coisa: todos nós temos os nossos próprios espaços, temos nossos medos, nossas limitações e desafios a serem vencidos… — Naquele momento eu já estava me sentido um tolo inconsequente e ele ainda continuou a sessão — Eu sei o que você fez no verão passado.

— Assim como o pato podemos nos sentir sozinhos, excluídos e miseráveis nesse mundo tão cruel… Mas, também assim como o pato, se observamos do ponto de vista do observador e sairmos do ponto de vista do protagonista, poderemos perceber que não estamos tão excluídos assim… Senhor! Há pessoas que nos acham importantes, tão importantes que nos querem levar para dentro do mundo delas!

Fico cada vez mais intrigado com a vontade do guarda e a sua tão aparente sabedoria que tomo coragem e pergunto se ele é realmente um guarda ou um psicólogo fantasiado. Ele simplesmente sorri e continua a sua sessão quase que cômica de psicologia fajuta.

— Não, senhor, eu não sou psicólogo… Mas bem que seria uma situação bastante melhor do que a que vivo! Leio muito e inclusive seus escritos que sempre joga no lixo cedinho… Pela manhã, eu espero o senhor entrar em casa, vou lá, recolho, encaderno a mão e leio todos…

Nessa hora não seguro a emoção e lágrimas correm em meu rosto. Abraço o guarda e dou as costas, recolhendo a minha satisfação e também a minha solidão que é de praxe.

— O senhor é importante para mim e para o pato… Seus escritos poderiam mudar a vida de muita gente… Até mais meu escritor vizinho!

Aquelas palavras tocaram muito mais profundo do que eu imaginava ser possível. Talvez agora pare de vir ao parque… Mas talvez, também, não jogue mais meus escritos e versos no lixo, pois algum outro vizinho maluco pode querer pegar.

Visited 35 times, 1 visit(s) today

Last modified: 06/08/2024

Close

Olá Aortano👋,
que bom te ver por aqui.

Inscreva-se e receba em primeira mão a nossa newsletters.

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.