Written by 7:42 PM RESENHA

Um livro com gosto de (a)mar

Desvelando a segunda obra de Rafael de Abreu

Era um fim de tarde na Bahia, no mês de setembro do ano passado, quando recebi uma mensagem do querido Rafael de Abreu falando que me enviaria seu segundo livro. Total foi minha surpresa e, de tamanha felicidade, somente consegui acreditar quando o recebi em minhas mãos. 

Quem acompanha a revista e leu as outras edições, já pôde notar a minha admiração por esse poeta, autor de “Poço do fim do mundo” – livro que resenhei na nossa 8ª edição. Lá atrás, eu falei sobre sua capacidade de fazer com que mergulhemos em nós através de suas palavras. Desta vez, nesta nova leitura, não foi diferente.

Apenas para fazer um paralelo sobre a forma como me senti durante essa submersa leitura, atrevo-me a fazer um paralelo com um miniconto muito caro do Eduardo Galeano chamado “A função da arte”. Nele, temos um personagem chamado Diego que não conhecia o mar até que o seu pai Santiago o leva para o sul, a fim de descobri-lo. Quando chegam lá, após muita caminhada, o menino simplesmente fica mudo e sem saber para onde olhar primeiro diante de tamanha imensidão e beleza.

Acredito que ao terminar a leitura de “O próximo vento nos levará para casa” fiquei completamente emudecida e inebriada, tal qual o personagem Diego ao ver o mar pela primeira vez. Fui envolvida pela literatura de Rafael mais uma vez, desde a capa de seu livro até os agradecimentos. Como todo elemento artístico que nos encanta, parece que quanto mais lia, mais me perdia (ou me reencontrava) nas referências delicadas e banhadas por águas salgadas. E assim é a leitura desse livro, que nos invita a sermos barco, água ou puro sentimento, sem nem precisar nos transportar para fora do quarto, bastando apenas olhar para as folhas à nossa frente.

Este livro foi publicado pela editora Urutau, contém setenta e duas páginas amareladas, edição de Débora Rendelli, orelha de Luisa Müller e foi dedicado à Patrícia Pinheiro. Dividido em cinco partes e quarenta e cinco poesias no total, viajamos nos poemas sensuais e nos aprofundamos nas palavras ainda mais intimistas e melancólicas do autor, quando comparadas ao seu primeiro lançamento.

Na primeira parte, denominada “Praia deserta” relembramos a figura de Ulisses, personagem imponente e aventureiro da mitologia grega e romana. O autor, então, afirma diversas vezes que “eram tempos de amor junto ao mar”, nos levando, neste naufrágio que somos, aos sentires mais carnais e verdadeiros.

Em “Todo teu corpo é sal” os poemas são extremamente lascivos, e traçam com suor e saliva os caminhos longos de quem deseja e pulsa. Os cenários são construídos a partir de cenas caseiras e cotidianas, algo inovador em relação à outra produção de Rafael, o que me encantou muito, sobretudo porque transforma qualquer profano desejo em algo sagrado e urgente.

“eternizar nas papilas/
tudo o que do teu corpo escorre/
antes que o tempo coma…”

Em “Paragens partidas”, temos a temática da despedida e saudade como foco. Os poemas, em grande parte curtos e livres, traçam a lida de quem vê o(s) barco(s) (com tudo o que possuem dentro) indo embora, mas deixando ainda muitos silêncios e folhas a serem preenchidas para quem fica na areia, a observar sua partida. Nessa parte, muitas vezes o próprio léxico é insuficiente para descrever o que se sente e, além disso, as figuras de linguagem são utilizadas de forma muito ousada. Algo, a meu ver, encantador.

“mudem o léxico
a partir de agora
toda garrafa
significará
esquecimento”

Na terceira parte, denominada “Abissal ou onde a luz não alcança”, Rafael traz poemas curtíssimos que me fizeram refletir por semanas acerca do vazio. Mas não o vazio que nada possui, onde não existe nada. E sim sobre os vazios que tudo preenchem, sobre dúvidas, sobre a incapacidade de nomear coisas e desejos, sobre ansiar e buscar aquilo quem, muitas vezes, nem mesmo entendemos.

“diga-me [oceano]
este desejo
como o chamarei?”

Em sua finalização, “Quando acharem os destroços” se destaca, pois em seu último poema temos os versos que dão título ao livro e, ainda que esteja no encerramento, as reflexões a que se propõe não findam. Nessa parte, há uma entrega voraz do autor diante do concreto e do inconcreto, sobre se encontrar e encarar naufrágios, sobre reconhecer os próprios medos e as próprias ignorâncias. Consoante a isso, Rafael retoma um pensamento de Clarice Lispector sobre aceitar o não entendimento de tudo, pois viver realmente ultrapassa qualquer fato, situação ou conceito pré-estabelecido. E, por mais que pareça incoerência, isso não nos torna barcos atracados na areia, ao contrário, é o que nos levará à nossa própria essência, o nosso eu-lar.

“não entendo nada de muita coisa
mas isso não me amarra ao chão
não entender é o vento
que nos levará para casa.”

E dessa maneira, ainda fazendo paralelos e referências, termino esta coluna resumindo o livro “O próximo vento nos levará para casa” com a mesma percepção de Júlio Verne quando afirmava outrora que o mar não é apenas o movimento, mas é justamente algo tão sobrenatural que se torna um infinito vivo. Portanto, sim! Somos todos nós naufrágios, águas salgadas, turvas ou cristalinas. E dessa amálgama louca que é a vida surgem obras tão preciosas quanto a de Rafael de Abreu, a qual certamente indico a leitura.

Por: Cinthia Fragoso

Cinthia Fragoso
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Last modified: 10/07/2024

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